A experiência de ser uma menina travesti em uma universidade pública no Brasil
Lua Quinelato, que tem 19 anos, reflete sobre sua experiência como menina travesti na universidade pública, onde achou sua comunidade, e escrita do Manifesto #MeninasDecidem, exigindo educação de qualidade e com equidade para todas as meninas. Para as jovens, a educação inclusiva é fundamental para seu ativismo, identidades e libertação.
O início de 2022 marcou o início de um sonho realizado – meu sonho de entrar na universidade. Eu sabia que encontraria muitos obstáculos, mas tinha certeza de que isso mudaria completamente minha percepção do mundo. Eu me perguntava se seria capaz de concluir meus estudos devido à minha formação educacional, vinda de uma escola pública fraca que não me preparou adequadamente. Além disso, duvidava se conseguiria entrar no mercado de trabalho.
Estudar em uma universidade pública faz você olhar para sua vida sob uma perspectiva diferente e lhe torna mais disposta a compartilhar suas lutas, porque, uma vez lá, você percebe que não pode fazer nada sozinha. O processo de aprendizado depende de colaborações entre professoras/es e colegas.
Frequentar um curso na área de ciências humanas, e especialmente um curso de graduação, muitas vezes pode te prender em uma bolha, se você não tentar interagir com a comunidade universitária como um todo. Você pode facilmente acabar discutindo apenas com estudantes que têm visões e perspectivas semelhantes às suas.
Ser uma menina travesti e estudante de pedagogia não é simples, sem mencionar ser uma menina travesti que quer ensinar crianças. Identidades fora da cis heteronormatividade foram historicamente marginalizadas. Existir nos espaços das crianças, que são vistos como espaços de inocência, é sempre muito difícil, porque as pessoas muitas vezes veem identidades travestis como ameaçadoras e predatórias. É difícil conseguir um estágio na minha área de estudo, mesmo que eu tenha passado por várias entrevistas de emprego.
Outro fato importante é a solidão que uma menina travesti enfrenta na universidade, considerando que apenas 0,02% da população transgênero tem acesso a espaços universitários, de acordo com uma pesquisa realizada pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA). Cerca de 80% dessas pessoas não concluíram o ensino médio. Esses são dados alarmantes e são resultado da marginalização imposta aos nossos corpos pelo sistema capitalista, que cria um ciclo de exclusão e desumanização que afeta todas as áreas de nossas vidas. No meu caso, sendo a única menina travesti na minha sala de aula, experimentei discriminação e me senti muito sozinha, porque não tive a oportunidade de compartilhar minhas lutas.
Uma maneira de superar essa solidão é construir uma comunidade. Pude fazer isso com a Rede Transvestis UFFianas, da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde estudo. É um coletivo de pessoas transgênero que oferece um ambiente acolhedor e de apoio, o que tem sido importante para mim como menina travesti. "Travesti" é uma identidade feminina histórica na América Latina.
É também reconhecida como uma identidade de gênero política, desempenhando um papel social na luta pelo resgate do termo "travesti", que por muito tempo carregou uma conotação negativa.
A Rede Transvestis promove ação conjunta em favor dos direitos das pessoas transgênero dentro e fora da universidade. É ainda um espaço de luta. Simplesmente não aceitamos o fato de que pessoas transgênero muitas vezes são discriminadas e têm o acesso negado a esses espaços por causa da sua identidade de gênero. Entrar na rede me fez sentir abraçada e parte de uma comunidade.
É crucial enfatizar que esforços conjuntos entre pessoas transgênero podem mudar suas realidades, assim como as mais antigas fizeram e continuam a fazer. Elas conseguiram garantir direitos fundamentais, como a mudança de nome e documentos, e um melhor acesso ao mercado de trabalho.
Elas resistiram a ataques direcionados contra pessoas transgênero durante a ditadura militar brasileira. Precisamos continuar acessando e subvertendo a lógica dos espaços em que estamos. Nossa presença é capaz de mudá-los radicalmente; precisamos manter isso em mente. Nossos corpos são políticos, então vamos transformá-los em nossa luta por direitos iguais.