No Brasil, #MeninasDecidem seu futuro

Maria Eduarda Moreira  | 

“Vi como seria maravilhoso se as barreiras para acessar a educação fossem removidas, como seria bom se não houvesse obstáculos como o vestibular e se as escolas oferecessem assistência como parte uma política pública.” (Crédito da foto: Karina Gomes)

Maria Eduarda, que tem 18 anos, reflete sobre a escrita do Manifesto #MeninasDecidem, exigindo educação de qualidade e com equidade para todas as meninas. Para ela, a educação é fundamental para seu ativismo, identidades e libertação.

Quando eu era criança, gostava de desenhar e descobrir coisas novas. Gostava de ler e escrever. Meus pais costumavam me levar com eles para o trabalho quando não havia ninguém mais para cuidar de mim. Eu nasci em Osasco, uma cidade na região metropolitana de São Paulo, onde passei a maior parte da minha infância. Minha mãe tinha que fazer uma longa viagem de duas horas, de ônibus e trem, para chegar ao trabalho. Ela trabalhava como empregada doméstica em um condomínio em Alphaville, uma região rica de São Paulo.

Tudo lá parecia muito estranho para mim, já que não tinha nenhuma semelhança com a minha realidade. Sempre me senti como se estivesse em um sonho. Eu podia ver nos olhos dela o quanto ela estava cansada depois de limpar uma casa tão grande e aquele cansaço aumentava no caminho de volta para casa. O trabalho do meu pai ficava ainda mais distante, em um shopping no centro de São Paulo. Eu costumava ver tantas pessoas diferentes de mim, diferentes da minha cor – na maioria brancas, de alta renda. Meu pai trabalhava como segurança, fazendo turnos de 12 horas.

Minha vida inteira vi meus pais trabalharem, mas eles nunca foram capazes de fornecer à nossa família necessidades básicas, como um plano de saúde privado, já que o sistema de saúde pública no Brasil é de baixa qualidade. Ao longo dos anos, apenas sobrevivemos. Lembro-me de que ambos sempre elogiaram e valorizaram meus estudos, porque seriam a luz no futuro da nossa família. Com os estudos, eu seria capaz de encontrar um emprego adequado para sustentar minha família. Mas minha mãe não viveu para ver isso e acompanhar minha jornada. Ela faleceu aos 40 anos de idade devido a um câncer. Mesmo assim, meus objetivos não mudaram. Eu queria fazer com que meus pais se orgulhassem de mim – e ainda quero. Eles sonhavam com um futuro de sucesso em que eu seria independente e minhas necessidades seriam atendidas.

Pude sentir o poder de representar as demandas de tantos estudantes que surgiram devido à pandemia. Senti que tinha voz para algo que precisava ser ouvido por pessoas que poderiam fazer uma mudança.
— Maria Eduarda

Quando comecei o ensino médio aos 15 anos, o Brasil enfrentava cortes de verbas na educação que tornaram difícil para os estudantes de escolas públicas acessarem o conhecimento e contribuíram para agravar desigualdades estruturais. Toda essa incerteza me deixava ansiosa e insegura. Eu me perguntava se seria capaz de concluir meus estudos.

Além disso, no meu primeiro ano do ensino médio, vivi a pandemia de Covid-19. Sob a administração do ex-Presidente da República, Jair Bolsonaro, o sistema de educação pública foi completamente negligenciado e isso afetou todas/os estudantes da rede pública de ensino. Muitos não tinham acesso à internet e a telefones celulares para acompanhar aulas online, e muitos desenvolveram problemas de saúde mental, incluindo eu. As pessoas foram forçadas a trabalhar durante a crise e os estudantes passaram fome sem acesso às refeições diárias oferecidas pelas escolas públicas. A taxa de abandono escolar atingiu números sem precedentes, com mais de 5 milhões de estudantes fora da escola no Brasil em 2021, de acordo com o UNICEF.

Além disso, o fantasma do dever, de ter que ser bem-sucedida, ainda me assombrava. No meio de tantas dúvidas e medos, eu estudava em preparação para o vestibular.

Meu último ano de escola foi o meu primeiro ano de estudos em tempo integral – e também o ano em que comecei a trabalhar. Eu precisava ser independente. As aulas terminavam às 17h e eu tinha que ir trabalhar às 18h. Muitas vezes eu trabalhava 12 horas por dia e isso comprometia meu desempenho, foco, saúde mental e minhas chances de entrar em uma universidade. Mas eu não tinha outra opção. Mantive essa rotina até o segundo semestre. Era muito cansativo e desgastante. O que manteve a minha motivação foi meu ativismo pela equidade de gênero e de raça.

Em junho de 2022, fui convidada pela Rede de Ativistas pela Educação no Brasil para ser uma das autoras do Manifesto #MeninasDecidem pelo Direito à Educação, um documento que apresenta as demandas de meninas de todo o Brasil por uma educação de qualidade.

Aos sábados, quando eu tinha algum tempo livre, participava ativamente de movimentos sociais e projetos feministas, incluindo o projeto Mandacaru Malala, implementado pela ativista Benilda Brito. Sou também presidente do Coletivo Jovem da organização As Karolinas, um movimento juvenil de comunidades desfavorecidas. Essa oportunidade foi crucial para mim, porque me senti acolhida e pude expressar minhas demandas para a educação.

Como mulher negra e estudante da periferia e que, aos 16 anos, já tinha um emprego, pude sentir o poder de representar as demandas de tantos estudantes que surgiram devido à pandemia. Senti que tinha voz para algo que precisava ser ouvido por pessoas que poderiam fazer uma mudança.

No mesmo mês em que o Manifesto #MeninasDecidem foi lançado, fiz meu primeiro exame de entrada para estudar história na universidade. Em novembro, após um ano difícil, me matriculei no curso dos meus sonhos. Eu estava feliz, mas também preocupada: a universidade ficava em outra região do estado, a 60 km de onde moro atualmente (na cidade de Exu, no estado de Pernambuco).

Eu não conseguia enxergar uma saída, pois o custo mensal do transporte era muito caro, e mudar para lá arriscaria meu emprego, entre outros problemas. Foi o momento em que mais senti falta dos conselhos da minha mãe. Decidi me mudar e recomeçar. O pior de agir por conta própria é que as consequências de decisões são todas suas. O município não pagou os custos do transporte, mas minha única opção era ir. Eu me senti ansiosa e com medo de não conseguir – às vezes ainda sinto.

Gostaria que o governo estivesse mais presente e fosse mais responsável quando se trata de educação. Ao ver tantas pessoas desistirem dos estudos, tive um gosto de quão difícil é se destacar quando as desigualdades estruturais jogam contra você, contra a sua educação e contra a realização dos seus sonhos.
— Maria Eduarda

Conheci várias pessoas que tiveram que desistir da educação devido à baixa renda, à falta de apoio do município, à falta de apoio familiar ou à necessidade de se sustentar. Decidi ir atrás dos meus sonhos por aquelas pessoas que acreditaram em mim. Vi como seria maravilhoso se as barreiras para acessar a educação fossem removidas, como seria bom se não houvesse obstáculos como o vestibular e se as escolas oferecessem assistência como parte uma política pública. Muitas/os estudantes não sabem que têm esse direito.

Gostaria que o governo estivesse mais presente e fosse mais responsável quando se trata de educação. Ao ver tantas pessoas desistirem dos estudos, tive um gosto de quão difícil é se destacar quando as desigualdades estruturais jogam contra você, contra a sua educação e contra a realização dos seus sonhos.

“A educação liberta, mas sem acesso, não passa de um obstáculo pelo qual as pessoas desfavorecidas, por mais que lutem, são excluídas.” (Crédito da foto: Karina Gomes)

A educação liberta, mas sem acesso, não passa de um obstáculo pelo qual as pessoas desfavorecidas, por mais que lutem, são excluídas. Espero que casos como o meu – e há milhares por aí – recebam assistência. Espero que possamos concluir nossa educação, que não haja evasão escolar e que o aprendizado se torne um verdadeiro direito para todas as pessoas, fazendo valer o Artigo 205 da Constituição: "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".

Meu objetivo agora é trabalhar como educadora em comunidades desfavorecidas, promovendo cultura, esportes e discussões políticas. Que nos tornemos cidadãs e cidadãos melhores por meio da libertação das nossas mentes e que preservemos a qualidade da educação e que consigamos garantir acesso a todes. Ainda há muito a lutar pelas futuras gerações. Que nunca percamos o instinto de defender o que é nosso.

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Meet the Author
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Maria Eduarda Moreira

(she/her) is an 18-year-old, black woman from Exu, Pernambuco, Brazil. She is the president of the youth collective of As Karolinas, an organisation seeking to empower youth from low-income communities.